Fonte: Jornal O Estado de São Paulo SA em maio/2012
por João Ubaldo Ribeiro
"Acho que ninguém acredita que essa CPI vá dar em alguma coisa, talvez nem sequer pizza. Não sei se as normas aplicáveis permitem isso, mas a impressão que se tem é de que, se fosse possível, os responsáveis por sua criação a dissolveriam e sairiam disfarçadamente do Congresso, assobiando com a mão no bolso e olhando para o ar como quem não quer nada – CPI, que CPI é essa, não sei de CPI nenhuma, é tudo invenção da imprensa, tirem esse bicho daí. A experiência sugere que não vão investigar nada e que nada vai dar em coisa alguma, nem em reais punições para eventuais culpados. Pode-se, no máximo, encenar alguma palhaçada, como a que se vislumbra quando o Bonner noticia, conseguindo manter a cara séria, que Fulano de Tal estará sujeito a 20 ou 30 anos de cadeia por safadagens financeiras variadas, quando todo mundo sabe que o cara vai ser condenado a quatro, vai cumprir um tantinho e sair lépido e lampeiro, para gastar a graninha surrupiada. Isso na eventualidade rara de ele não conseguir sucessivas protelações, através das mirabolâncias processuais praticadas no Brasil, e morrer velho e rico, sem nunca chegar nem perto da cadeia.
Genericamente, que esperar de uma CPI num país de oposição tartamuda e incapaz e de uma maioria governista composta, não de partidos políticos, mas de bandos de interesse puro e simples pelo muito que o poder dadiva, em mimos tanto para o bolso quanto para o ego, entre privilégios indecentes e regalias de sultão? Os partidos não se distinguem uns dos outros, porque querem a mesma coisa e, se chamados a traçar rumos ou projetos para o País, falarão, como todos falam em seus programas e comerciais, em grandiloquências vagas, como “oportunidade igual para todos”, “um governo que realmente atente para os interesses do povo brasileiro”, “a criação de postos de trabalho”, “uma política de saúde realmente eficaz”, numa ladainha que um papagaio bem treinado decoraria e que é intercambiável por todos os partidos.
Os perpetradores dessa peça burlesca talvez tenham entrado numa crise de onipotência e achado (o poder e a impunidade devem cegar um pouco, ou até bastante) que iam ter controle sobre sua condução e seus desdobramentos. Foi um erro metodológico. Esqueceram, talvez porque elas há tanto tempo integram a realidade, que a corrupção e a imoralidade se tornaram sistêmicas no nosso universo político-administrativo, o qual se pode comparar com um organismo ou com uma estrutura qualquer, um conjunto de partes interdependentes. Nesse organismo, a corrupção já de muito entrou em metástase, tudo indica que não existe área em que ela já não se tenha instalado. Não há como pensar sobre o funcionamento do Estado no Brasil, em todos os níveis da Federação, sem levar em conta que é um sistema onde a corrupção se tornou crÿnica e é constituinte ind issolúvel dele, permeando-o de cima abaixo. Mencione-se também a incúria e a incompetência, que ajudam a levar pelo ralo o dinheiro público que sobra da rapina. E isso abrange todos os poderes e setores da República, como somos informados a cada dia, diante de denúncias de venda de sentenças, vereadores se mancomunando para obter ganhos ilícitos, deputados representando farisaicamente interesses espúrios, ministros suspeitos de gatunagem, fiscais formando quadrilhas de extorsão e por aí se segue, numa multiplicidade que desafia qualquer enumeração.
Mexer num ponto dessa estrutura orgânica leva, inevitavelmente a outro ponto e a mais outros, sucessivamente. Um roubo revela outros, suspeito eu que em progressão geométrica. E também surgem ligações inesperadas, basta começar a puxar as várias pontas desse novelo colossal. Acho que, subitamente despertos para esse fato, os membros da CPI entraram em parafuso, agravado pelo silêncio de Cachoeira e pelo fiasco grotesco de parlamentares fazendo uma pergunta atrás da outra, presumivelmente para mostrar serviço, ou anunciar posições, pois que sabiam que o perguntado não ia falar nada. Como já vinham ensaiando, começaram a ameaçar engalfinhar-se, denunciando-se uns aos outros. Mas aí viram que, por essa via também correm muitos riscos e o melhor mesmo devia ser esquecer essa CPI, porque vai acabar sobrando para todo mundo.
Se não dá para dissolver a CPI, dá para procurar esfriar as coisas um pouco, como num jogo de futebol em que um empate em zero a zero convenha a ambos os times. Calma, pessoal, vamos pensar com a cabeça fria, isso não vai dar em boa coisa para ninguém, vamos pegar um diretorzinho aí para levar a carga principal da culpa, talvez o boy que tenha transportado mensagens comprometedoras ou criminosas, vamos deixar de moralismo mesquinho, atire a primeira pedra, etc. e tal.
Quem é mesmo que manda em nosso país? No interesse de quem somos governados? De quantas formas somos engabelados, iludidos, trapaceados e prejudicados? Como será esse labirinto sombrio do poder daninho e da roubalheira, quantos minotauros vivem dentro dele? Acho que nós, o povo, jamais saberemos. Quem era que podia imaginar que o senador que ostentava a mais severa e austera catadura entre todos os seus pares, na imagem quase perfeita de um político virtuoso, um varão de Plutarco de nossa época, era moço de recados e ajudante de serviços gerais de uma quadrilha delinquente? E que havia tanta gente “conversável” em todos os órgãos do governo, de alto a baixo? É, talvez seja mesmo melhor não saber. E, pelo visto, concluir que o patriota em toda esta história está sendo Cachoeira, que, se abrir a boca, pode fazer enorme estrago na República."
Ir:. Giuseppe D'Agostino
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